Muitos pensam que o problema da fome se deve ao excesso da população, de que não há alimentos para todos e se faz necessário o controle da natalidade. Essa tese não se justifica. A FAO, organismo da ONU dedicada à alimentação, há vinte anos afirma que o problema é político. A fome é um problema, sobretudo, de acesso à comida e não de disponibilidade de alimentos, ou seja, a crise alimentar não é uma crise fundamentalmente de produção, mas de distribuição. O problema está no mercado.
“Hoje produzimos alimentos demais. Muito mais do que seria necessário para alimentar a população atual, sendo que ainda nem estamos perto de esgotar o potencial da alimentação direta. E, para pequenos produtores rurais, dobrar a produção custa pouco”, argumenta Benedikt Haerlin, da fundação Zukunftsstiftung Landwirtschaft, que apoia projetos ecológicos e sociais no setor agrícola. “A ideia de que somos cada vez mais numerosos e por isso precisamos produzir mais é equivocada. Precisamos é produzir melhor. Menos da metade dos grãos hoje em dia é destinada à alimentação, enquanto a maior parte serve para fabricar rações animais, biocombustíveis e outros produtos industriais”, explica Benedikt Haerlin.
O problema é de acesso à comida, diz David Dawe, Ph.D. em Economia pela Universidade de Harvard. Segundo ele, “a fome crescente é um problema de acesso à comida, e não de disponibilidade de alimentos”. “Se temos 1 bilhão de pessoas que passam fome por não ter dinheiro para comprar comida e outro bilhão de clinicamente obesos, alguma coisa está obviamente errada”, alerta Janice Jiggings, do Instituto Internacional para Meio Ambiente e Desenvolvimento em Londres.
A razão para o aumento da fome está ainda associada, entre outros fatores, a crise econômica (leia-se especulação das grandes corporações com os alimentos que chamam de commodities), às mudanças climáticas que provocam em alguns momentos inundações e, em outros, secas terríveis, e ao aumento das controvertidas plantações para produzir combustível, que rouba áreas da agricultura de subsistência.
A crise alimentar encerra ainda outro paradoxo: ela se dá num contexto de extrema falta e abundante desperdício. Já hoje existe mais comida que o necessário garante o diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), Achim Steiner, e sem cultivar um quilômetro quadrado que seja a mais, seria possível alimentar toda a população do planeta. Segundo ele, “ao mesmo tempo em que temos uma crise de alimentos, jogamos fora 30% a 40% dos alimentos produzidos. Ao invés de nos perguntarmos onde podemos encontrar mais terra para cultivar ou se será preciso plantar na Lua, deveríamos olhar para o nosso quintal. Temos que encontrar estímulos financeiros para evitar que se jogue comida fora”.
A crise alimentar está também associado ao escandaloso subsidio concedido aos fazendeiros dos países ricos. Existe muito dinheiro para subsidiar a agricultura dos que já tem muito e pouco, ou quase nada, para os países pobres que mais precisam.
Vandana Shiva, a ativista e intelectual indiana, defende a tese de que “são os métodos de desenvolvimento equivocados que causam a fome de centenas de milhões de pessoas”. Segundo ela, “hoje, nos dizem que um bilhão de pessoas passam fome. Eu acho que se deveria perguntar o porquê. O porquê é explicado há muitos anos pelos especialistas, economistas e climatologistas como eu, que a FAO não ouviu. Há estudos qualificados que defendem que as monoculturas tornam a agricultura mais vulnerável, e que o uso de fertilizantes químicos contribui para as mudanças climáticas”.
Nas últimas décadas, o livre comércio e as políticas neoliberais favoreceram e incrementaram o agronegócio, em detrimento da agricultura familiar, da reforma agrária, da produção ecológica.
A ativista dá o exemplo do seu país, a Índia: “A globalização não significou o livre comércio de comida de alguns países para outros. Pelo contrário, ela esmaga os países que podem produzi-la. Em troca, um bilhão de pessoas passa fome. Em um mundo que produz mais comida do que nunca, o consumo per capita, na Índia, caiu de 270 quilos por ano para 150 quilos, menos do que na grande crise alimentar de Bengala [1945]. Hoje, 70% das crianças estão desnutridos, e as mulheres estão anêmicas porque plantam sementes sem ferro”.
Vandana Shiva alerta para o mito da Revolução Verde, o que inclui os transgênicos: “Hoje, falar de Revolução Verde como solução é absurdo. A Revolução Verde só produziu mais arroz e trigo porque houve mais irrigação. O ruim é que são usados pesticidas para sementes transgênicas que não são afetadas por esses produtos. E as famílias se endividam ao comprar esses produtos. Hipotecam até as terras. Hoje, os que passam fome são os produtores de comida, porque não podem comer o que semearam. A indústria química, a revolução verde e os transgênicos baseiam-se na morte. Vendem-na como milagrosa, mas quando se substitui ciência por mitologia, nunca se sabe se os colegas cientistas irão mentir. E a Revolução Verde é um mito”.
A “revolução verde”, 40 anos depois, mostra seus limites econômicos, ambientais e sociais. O modelo agrícola dominante no mundo, o agronegócio, é destruidor da natureza, assentado no monocultivo, concentrador de recursos, protagonizado pelo grande capital, gera um reduzido número de postos de trabalho e atende fundamentalmente interesses transnacionais, ao mesmo tempo em que persegue objetivos mercadológicos. Os fertilizantes químicos e os defensivos agrícolas, causam estragos ambientais muitos deles irreversíveis. Insistir nesse modelo como resposta ao problema da fome é uma mentira.
Plantar o que, para quê e para quem?
Em um instigante artigo, o ambientalista e jornalista Washington Novaes, pergunta: “Qual é hoje a questão central, mais grave, no mundo? A população de 6,8 bilhões, que pode chegar a 9 bilhões em 2050 (ou a 12 bilhões, segundo demógrafos mais pessimistas)? O consumo de recursos e serviços naturais, já quase 30% além da capacidade de reposição do planeta (e que tende a crescer mais)? A fome (mais de 1 bilhão de pessoas) e a pobreza (cerca de 40% da humanidade)”?
O mérito da pergunta está no fato de que ao contrário de isolar os problemas é necessário conectá-los. A crise alimentar está entrelaçada à crise climática. No artigo, Washington de Novaes chama a atenção para o fato de que na África Subsaariana, hoje com cerca de 800 milhões de pessoas, 200 milhões já passam fome. Segundo ele, “a produtividade agrícola ali, de 1,2 tonelada por hectare, é menos de metade da média nos demais países pobres, de 3 toneladas por hectare. E só 3% das terras são irrigadas; 80% das propriedades rurais têm menos de 2 hectares. Mas a moeda tem outra face: os pobres africanos (como os asiáticos) emitem 0,1 tonelada de dióxido de carbono por ano, enquanto o norte-americano médio emite cerca de 20 toneladas”.
Esse fato permite a vinculação com o tema da crise ecológica e Washington Novaes faz menção a uma discussão promovida pela revista New Scientist com alguns pensadores respeitados. O ambientalista cita, entre eles, a tese de Fred Pearce, para quem o problema não é de população, mas consumo excessivo. Jesse Aubels, da Universidade Rockefeller, acredita que a solução virá de tecnologias que permitam produzir mais em menos terra, gerar mais energia com equipamentos mais eficientes e não poluentes, replantar florestas, mudar hábitos de consumo (uma dieta vegetariana, diz ele, pode ser viabilizada com metade da área exigida por uma alimentação à base de carnes). Na sua opinião, novas tecnologias permitiriam ao planeta ter até 20 bilhões de pessoas.
Fred Pearce, autor de Peoplequake (terremoto populacional), entende que, mesmo se se estabilizar a população (com a queda da taxa de fertilidade das mulheres), o consumo continuará sendo a questão crucial, tanto pelo lado da sobrecarga em matéria de recursos e serviços naturais como pelo ângulo das emissões de poluentes que afetam o clima, intensificadas pelo alto consumo. Hoje, lembra ele, os 500 milhões de pessoas mais ricas (7% da população mundial) respondem por 50% das emissões; os 50% mais pobres da população (3,4 bilhões) respondem por 7% das emissões totais. Um norte-americano emite tanto quanto toda a população de uma pequena cidade africana.
O modo de produção e consumo dos países ricos é insustentável. A pressão que colocam sobre o planeta para preservar o seu modo de vida é diretamente responsável pelo que falta aos outros. A questão crucial a ser debatida é plantar o que, para quê e para quem.
A fome e o caso brasileiro
Numa Conferência em que os governantes dos países mais ricos não foram, o Brasil sobressaiu como modelo a ser perseguido, sobretudo em função do programa de transferência de renda, o Bolsa Família. De acordo com um ranking elaborado pela ONG anti-pobreza Action Aid, o Brasil é líder no combate à fome entre os emergentes.
O presidente Lula esteve na Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar da ONU e afirmou que a fome “é a mais temível arma de destruição em massa que existe no nosso planeta", acusou os países ricos ao dizer que “metade dos recursos usados para salvar bancos erradicaria fome no mundo” e fez uma veemente defesa do programa Bolsa Família – responsável, segundo ele, por retirar 20,4 milhões da pobreza e reduzir em 62% a desnutrição infantil – e criticou aqueles que criticam o programa: "Qualquer esforço para socorrê-los da pobreza, da exclusão e da desigualdade era visto, e ainda é, por alguns, como assistencialismo ou populismo”.
“No caso da fome, acho que o Primeiro Mundo falhou. O Brasil, na verdade, se tornou um exemplo a ser seguido, tendo criado um modelo de transferência de renda, o do Bolsa Família, que poderia, e ao meu ver deveria, ser universalizado via ONU, com a transferência de recursos dos países ricos para os países mais pobres com o objetivo precípuo de erradicar a insegurança alimentar grave. Não vejo outra posição eticamente sustentável tendo em vista a dimensão do problema. Acho, realmente, que o mundo tem se omitido diante da tragédia da fome”, afirma o cineasta José Padilha, vencedor do Urso de Ouro com o filme Tropa de Elite (2007), e diretor do filme Garapa, produzido neste ano, e que discute o problema da fome.
Segundo ele, “é eticamente inadmissível que alguém, no grupo dos beneficiados históricos deste país, olhe para os miseráveis que não têm o que comer e diga que os R$ 58 que o governo dá a ele são uma política errada".
A política do governo Lula de combate a fome é hoje vendida pela própria FAO como um programa ser seguido por outros países. "No caso brasileiro, ao contrário, sucessivas decisões de governo carimbadas por alguns como assistencialistas foram corajosamente alçadas à condição de políticas de Estado nos últimos sete anos. Nascia assim, silenciosamente, uma engrenagem de fomento à demanda popular que se antecipou ao ‘mundo keynesiano’ legitimado pela explosão da bolha imobiliária nos EUA", escreve José Graziano da Silva, representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
Apesar dos esforços e progresso no combate à fome no país, cabe sempre alertar que o Brasil ainda não acabou com o problema e isso é ainda mais vergonhoso quando se sabe que o país está entre os maiores exportadores de alimento do mundo e entre os 10 países que mais desperdiçam comida no mundo.
Em que pese o fato do investimento em tecnologia de ponta nas últimas décadas ter colocado o Brasil entre os países mais competitivos do agronegócio no mercado internacional, o mesmo não foi suficiente para acabar com um problema básico: o desperdício de alimentos ao longo da cadeia produtiva. Sobre o desperdício, há outra situação incomoda manifestada pelo economista italiano Bruno Parmentier. Pergunta ele sobre o Brasil: “Como é possível que cause alegria em seu país, por exemplo, a abertura de restaurantes em que se paga um preço fixo ao entrar e a comida é ilimitada? Isso é provavelmente algo que tem suas raízes na cultura brasileira, mas que não corresponde de modo algum às exigências e aos desafios do século 21”.
Crise ecológica. Copenhague ‘flopou’
A Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas – COP 15, ou simplesmente a Conferência do Clima de Copenhague, um dos eventos mais aguardado do ano, senão o mais aguardado está fadado ao fracasso, simplesmente “flopou”, como diz o jornalista Claudio Angelo, ou seja, será um fiasco.
A importância de Copenhague que será realizado em dezembro ganhou evidência após o impactante relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – sigla em inglês) de 2007. À época, o informe dos pesquisadores e cientistas foi categórico e não deixou espaço para dúvidas ao afirmar de forma contundente – o relatório utilizou a expressão “inequívoca” – que o aquecimento global se deve à intervenção humana sobre o planeta.
Aguardava-se um compromisso mínimo entre os países para mitigar os problemas ambientais. Agora a elegante linguagem diplomática trabalha com o conceito de um acordo "politicamente vinculante", em vez de "legalmente vinculante”. Na prática significa “empurrar com a barriga” o problema para 2010.
A pá de cal em Copenhague foi dada pelos EUA. O presidente americano Barack Obama, em encontro com o presidente chinês, Hu Jintao, anunciou não ser possível anunciar metas para a Conferência no que foi seguido pelo presidente da China. Se a maior potência do mundo, os EUA, seguido pela segunda maior potência, a China, não querem um acordo no momento, Copenhague virou uma miragem. Sequer a presença de Barack Obama está certa na Conferência.
"Estou triste e desiludido. Nem o estímulo do Nobel pela paz foi suficiente para colocar as exigências globais em primeiro plano: continuamos sendo prisioneiros dos vetos cruzados da política interna", afirma Barry Commoner em entrevista ao La Repubblica sobre a posição americana. Barry, ecologista que há mais de 40 anos luta para dar espaço à energia solar, ficou chocado com a freada da Casa Branca com relação ao clima. Segundo ele, “a pressão política para a reforma da saúde fez com que faltasse o estímulo necessário para se obter um resultado no jogo climático. Assim, Obama registrou uma pesada derrota: não conseguiu assumir a liderança da economia verde".
Alguns já falam que Copenhague pode virar Doha, uma referência ao possível acordo comercial mundial que arrasta-se há anos e permanece inconcluso.
Na opinião do africano Kumi Naidoo, porta-voz da Campanha Internacional contra as Mudanças Climáticas do Greenpeace, falta vontade política para salvar Copenhague. Diz ele: “Se houve vontade para mobilizar bilhões para salvar bancos responsáveis pela crise, uma fração desse dinheiro resgataria a população pobre e o clima”.
É nesse contexto que devem ser interpretados os discursos inflamados dos presidentes Lula e Sarkozy nos últimos três dias. Os dois países anunciaram metas unificadas de combate às mudanças climáticas. Trata-se de uma aliança, a tentativa de formação de um bloco um bloco em oposição a Washington e Pequim.
O desfecho não chega a surpreender. Os encontros preparatórios à Copenhague de Bonn , Bancoc e recentemente Barcelona, já anunciavam a dificuldade de um possível acordo.
Na realidade, o fracasso anunciado de Copenhague está ligado ao fato de que os países ricos e os países em desenvolvimento temem a mesma coisa: frear o crescimento econômico. Os países industrializados (EUA e União Européia) temem se comprometer com metas fortes de redução das emissões de gases que provocam o aquecimento global, pois não querem ter perdas econômicas.
Já os países em desenvolvimento (particularmente o Brasil, a China e a Índia), mas também os africanos – com a África do Sul à frente –, argumentam que a responsabilidade histórica pela emissão de gases-estufa é dos países industrializados e que, assim como as nações do Norte, também têm o direito de se desenvolver. Os países em desenvolvimento não aceitam metas obrigatórias e querem que os industrializados concedam financiamentos para adaptação às mudanças climáticas.
O ambientalista Washington Novaes em entrevista à revista IHU On-Line, resumiu bem o impasse: “Os chamados países emergentes como Brasil, China, Índia, México e África do Sul alegam que essa responsabilidade [de drástica redução da emissão de gases estufa] deve caber aos países industrializados que emitem mais e há mais tempo, e que os emergentes não poderiam assumir compromissos de reduzir emissões porque isso poderia comprometer o seu desenvolvimento. Os países desenvolvidos, continua ele, em contrapartida, argumentam que se os emergentes não assumirem compromissos de redução, não se conseguirá nada porque, neste momento, o mundo em desenvolvimento já consome mais energia e emite mais que o primeiro mundo”.
O mesmo afirma o jornalista Cláudio Angelo, para quem a culpa é de todo mundo. Diz ele: “Os EUA são apenas a Geni do processo. Os europeus estão divididos, sem liderança e pressionados pelas próprias picuinhas internas – a resistência dos países mais pobres do Leste, por exemplo. Foi a UE, aliás, que cunhou o eufemismo ‘politicamente vinculante’ para ‘acordo fracassado’, na semana retrasada, em Barcelona. Canadá, Japão, Austrália e Nova Zelândia também não querem compromisso, mas se escondem atrás dos EUA. Com um clima desses, é melhor mesmo suspender a reunião e reconvocá-la depois. Resta saber se o planeta pode esperar – e sem garantia de sucesso. De toda forma, antes correr esse risco do que fechar um acordo frouxo, à la Kyoto, na capital dinamarquesa – que talvez fizesse bem em mudar seu nome para ‘Flopenhague’".(A análise é elaborada, em fina sintonia com o IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT - com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.)
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