quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

NO DIA EM QUE VI DEUS

Autor: Frei Betto
Natal é a "despapainoelização" do espírito. É quando o coração torna-se manjedoura e, aberto ao outro, acolhe, abraça e acarinha.
Violenta-se quem faz da festa do Menino Jesus uma troca insana de mercadorias. Quantas ausências nesses presentes! Em pleno verão, nos trópicos, o corpo empanturra-se de nozes e castanhas, vinhos e carnes gordas, sem que se faça presente junto àqueles que, caídos à beira do caminho, aguardam um gesto samaritano.
Ainda criança, em Minas, aprendi com meus pais a depositar junto ao presépio a lista de meus sonhos.
Nada de pedidos a Papai Noel. No decorrer do advento, eu engordava a lista: a cura de um parente enfermo; um emprego para o filho da lavadeira; e a paz no mundo.
Meu pai insistia para que eu registrasse meus sonhos mais íntimos.
Aos 8 anos, escrevi: "Quero ver Deus". Minha mãe ponderou: "Não basta Nossa Senhora, como as crianças de Fátima?". Não, eu queria ver Deus Pai. Nem imagens dele eu encontrava nas igrejas, que exibem, de sobejo, ícones de Jesus e pombas que evocam o Espírito Santo.
Na tarde de 25 de dezembro, meus pais levaram-me a um hospital pediátrico. Distribuímos alegria e chocolate às crianças, vítimas de traumas ou tomadas pelo câncer e por outras enfermidades.
Fiquei muito impressionado com um menino de 6 anos, careca. Na saída, mamãe indagou-me: "Gostou de ver Deus?". Fiquei confuso: "Só vi crianças doentes", respondi. Então ela me ensinou que a fé cristã reconhece que todos os seres humanos são imagem e semelhança de Deus.
Por isso é tão difícil ver Deus. Pois não é fácil encarar a radical sacralidade de todo homem e de toda mulher. Aos poucos entendi que o modo de comemorar o Natal forma filhos  consumistas ou altruístas.
E descobri que Deus é tanto mais invisível quanto mais esperamos que Ele entre pela porta da frente.
Sorrateiro, Ele chega pelos fundos, via um sem-terra chamado Abraão; um revolucionário, de nome Moisés; um músico com fama de agitador, Davi; uma prostituta, Raab; um subversivo conhecido por Jeremias; um alucinado, Daniel; um casal de artesãos que, recusado em Belém, ocupa um pasto para trazer o Filho à vida: Maria e José. No Evangelho de Mateus (25, 31-46) Jesus identifica-se com quem tem fome e sede, é doente ou prisioneiro, oprimido ou excluído. Aqueles que para os "sábios" são a escória da sociedade, para Deus são os convidados ao banquete do reino. Desde então aprendi que *Natal é todo dia*, basta abrir-se ao outro e à estrela que, acima das mazelas deste mundo, acende a esperança de um futuro melhor.
Sonhar com um mundo em que o Pai Nosso transpareça na grande festa do pão nosso.
Pois quem reparte o pão partilha Deus.